A produção de café cresceu
muito rapidamente durante todo o século XIX a partir da década de 1870-1880 o
café torna-se o centro motor do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Este
crescimento da produção cafeeira nessas décadas é acompanhado por um
deslocamento do centro geográfico das plantações. Durante a década de 1880 a
produção de SP ultrapassa a do RJ.
A importância do rápido
crescimento da produção e desse deslocamento geográfico só poderá ser entendida
se considerarmos as simultâneas mudanças ocorridas ao nível das relações de
produção, pois ao subir os planaltos de SP as plantações abandonam o trabalho
escravo e experimentam uma certa mecanização (pelo menos para o beneficiamento
do café).
A possibilidade desse
deslocamento é determinado pela construção de uma rede de estradas de ferro
bastante importantes.
O
financiamento e a comercialização da produção implica no desenvolvimento de um
sistema comercial relativamente avançado formado por casas de exportação e uma
rede bancaria.
É
fundamentalmente por essas razoes que o café tornou-se o centro motor do
desenvolvimento capitalista brasileiro. Iremos estudar agora essas
características mais de perto.
1. Plantações
1.1. Trabalho assalariado
Com
a imigração massiva, o trabalho escravo cedeu lugar ao trabalho assalariado nas
plantações de café. Dois terços de imigrantes chegados de São Paulo são
empregados nas plantações. Trata-se de um contrato de um ano, podendo ser
rescindido pelas duas partes com um aviso prévio de um mês.
Esse
contrato previa o pagamento de um salário base proporcional do número de pés de
café atribuídos ao trabalhador. A esse salário-base juntava-se uma soma
variável em função da colheita obtida. O trabalhador comprometia-se a efetuar
trabalhos exteriores à plantação. O preço da jornada de trabalho fora da
plantação era fixado no contrato.
Ao
lado dessas retribuições monetárias o trabalhador recebia um pedaço de terra
que podia ser cultivar por sua conta. O local desse terreno, assim como as
culturas que nele podiam ser estabelecidas, eram precisadas no contrato. As
culturas autorizadas eram milho, mandioca e feijão preto, isto é cultura de
subsistência. O produto dessas culturas
era, em geral, inteiramente consumido pelo trabalhador e sua família. Os
trabalhadores levavam ao mercado local o excedente da produção alimentar
realizada na terra destinada a subsistência.
Em
vez de conceder ao trabalhador um pedaço de terra exterior às plantações, o
fazendeiro podia autorizar o trabalhador a realizar culturas intercaladas. Esse
sistema tinha a preferência dos trabalhadores, porque eles podiam, dessa
maneira, manter com menos trabalho as duas culturas.
Progressivamente,
o sistema das culturas intercaladas tornou-se bastante raro. A interdição cada
vez mais freqüente das culturas intercaladas aparece como um meio de aumentar a
rentabilidade das plantações às custas dos trabalhadores.
Essa
tendência reforça-se com a crise de superprodução do café, que conduz ao
aumento das taxas de exploração nas plantações. Ela é certamente estimulada com
a chegada dos primeiros contingentes importantes de trabalhadores de origem
brasileira, após a segunda guerra mundial.
As
migrações no interior do Brasil são uma conseqüência do próprio desenvolvimento
das relações capitalistas que tinha como centro a economia cafeeira. Esse
desenvolvimento traz com ele as estradas de ferro, que facilitam as grandes
migrações.
Até
os anos 1920, os imigrantes de origem estrangeira são em maior número. E eles
não aceitam sem luta a exploração à qual são submetidos. Essas lutas tomam as
formas mais diversas, e muitas vezes violentas, dada a repressão exercida pelos
fazendeiros que proíbem por exemplo, aos trabalhadores todo o direito de
associação. É assim que as plantações são o palco de várias greves e que muitas
vezes as divergências entre trabalhadores e fazendeiros ou seus administradores
terminavam em tiros e assassinatos.
Em
razão das condições sociais e da remuneração, os trabalhadores ao fim do
contrato de um ano, para procurar uma situação mais vantajosa nas novas
plantações, nas cidades, ou mesmo em outros países da América Latina, como a
Argentina.
Ao
examinar esse problema da indústria cafeeira, Dennis não em leva me
consideração o fato de que essa industria é em grande parte o resultado da luta
de trabalhadores que não aceitavam passivamente as condições de trabalho
imposta pelos fazendeiros. Mesmo a mecanização parcial das fazendas não pode
ser explicada se não considerarmos essa luta (nas formas mais diversas) entre o
capital cafeeiro e os trabalhadores agrícolas.
1.2. Mecanização
A
substituição do escravo pelo trabalhador assalariado e o desenvolvimento das
plantações de café em todo o Estado de São Paulo, acarretaram a mecanização de
um parte da produção: as operações de beneficiamento.
Após
ter analisados alguns relatórios que insiste sobre as dificuldades dos
fazendeiros para encontrar trabalhadores um fazendeiro chamado Taunay, inventor
de uma máquina para o beneficiamento do café, afirma que a qualidade dos cafés
de SP estava melhorando e ele atribui essa melhoria ao progresso no tratamento
dos grãos imposto pela raridade da força de trabalho. Isso representava, diz
ele um investimento importante mais rentável, porque o café tratado com
máquinas era mais caro em cerca de 10% aos preços internacionais da época.
Apesar
de limitar-se às operações de beneficiamento, a mecanização não deve ser
subestimada. Ela constituiu, de um lado, um meio necessário ao estabelecimento
de plantações a distâncias muito grandes do porto de embarque. De outro lado
apesar de a propriedade fundiária ter permanecido sempre o elemento principal
que separava os trabalhadores dos meios de produção a mecanização desempenha
também um papel importante nesse sentido Os produtos eram tratados e ensacados
nas fazendas. A organização de uma plantação moderna implicava então na compra
de um equipamento cujo preço ultrapassava largamente os recursos da massa de
trabalhadores. Além disso, o funcionamento desses equipamentos supunha grandes
plantações, capazes de fornecer uma produção suficiente para tornar rentável
esses investimentos. Essa mecanização mesmo parcial representava um elemento
importante do sistema de grandes plantações dominado pelo capital.
Esse
aspecto da economia cafeeira — a indústria cafeeira que caiu um pouco no
esquecimento com o desenvolvimento posterior da indústria no Brasil foi muito
fortemente assinalada pelos autores da época, como Pierre Dennis e também
Delgado de Carvalho:
“A aparelhagem da usina de café atingiu um grau de perfeição
muito notável em São Paulo. É hoje a indústria melhor organizada d& Brasil.
As grandes fazendas de São Paulo são instalações modelo, que surpreendem o
viajante estrangeiro e são dignas de figurar ao lado das indústrias mais bem
aparelhadas da Europa”
1 - 3. Estradas
de ferro
O desenvolvimento da economia cafeeira não teria sido
possível sem as estradas de ferro.. A antigas tropas de mulas não podiam escoar
uma grande produção espalhada por milhares de quilômetros. Com as estradas de
ferro as distancias deixaram de ser obstáculo importante. Todo o interior de
São Paulo estava portanto apto a ser conquistado pelos “pioneiros” do café. As
plantações não seriam mais esmagadas sob o peso de colheitas impossíveis de
escoar
Em 1858, a São Paulo Railway Co. Ltd. era organizada na
Grã-Bretanha. Ela foi encarregada de construir uma estrada de ferro ligando São
Paulo ao Porto de Santos. Em 1867, a linha principal (Santos - São Paulo)
entrava em serviço.
Outras companhias construíram estradas de ferro para, a
partir de São Paulo, servir, todo o planalto. Essas companhias, organizadas
pelo capital cafeeiro brasileiro. Seus principais acionistas eram os próprios
grandes fazendeiros.
“Em 1879 — afirma Delgado de Carvalho — a zona cafeeira
encontrava-se quase inteiramente coberta, mas a febre de construção, longe de
diminuir, frente aos belos resultados que dava o transporte do café, procurava
prolongar as diferentes redes ferroviárias”
O desenvolvimento das estradas de ferro era comandado
pelos interesses dos administradores, produtores e comerciantes de café. Seu
traçado, por vezes caprichoso e que será necessário corrigir ou suportar
penosamente, depende da posição das maiores fazendas e da localizaØo das
cidades do café”. Dos 736 km de estradas de ferro construídas no Brasil em 1868
eram “estradas do café”.
Com o rápido desenvolvimento da rede de estradas de ferro
brasileira a partir de 1860 constitui-se
uma infra-estrutura necessária ao desenvolvimento do capitalismo, em particular
na região cafeeira.
2.
Capital cafeeiro
Desde o começo, os principais líderes da marcha pioneira
não se limitaram a organizar e dirigir plantações de café. Eles eram também
compradores da produção do conjunto de proprietários de terra. Eles exerciam as
funções de um banco, financiando o estabelecimento de novas plantações ou a
modernização de seu equipamento, emprestando aos fazendeiros em dificuldade.
Pouco a pouco, eles se afastam das tarefas ligadas à
gestão direta das plantações, que são confiadas a administradores. Eles se
estabeleceram nas grandes cidades, sobretudo em São Paulo. Suas atividades de
comerciantes não se conciliavam com uma ausência prolongada dos centros de
negócios cafeeiros.
A medida que a economia cafeeira se desenvolve, o papel
das casas de exportação, centralizando a compra de toda a produção cresce. A
importância dos capitais aplicados nessa esfera de economia está ligada ao
nascimento dos primeiros bancos brasileiros. As operações comerciais explicam o
nascimento e o desenvolvimento dos bancos.
2. 1 - Diversos aspectos e aspecto dominante do
capital cafeeiro
Mas se o capital cafeeiro exerce funções diversas, essas
funções estavam estruturadas de uma maneira precisa. As diferentes funções
exercidas pelo capital cafeeiro correspondem a relações reais que mantinham
entre si relações específicas. A análise dessas relações faz ressaltar a
dominação das funções comerciais.
A dominação do capital comercial explica-se pela posição
ocupada pelo Brasil no seio da economia mundial. Dado o fraco desenvolvimento
de suas forças produtivas, o Brasil se vê designado, na divisão internacional
do trabalho, a posição de país exportador de produtos agrícolas. Esse efeito do
desenvolvimento das relações capitalistas mundiais (sobre as condições próprias
da estrutura econômica brasileira, isto é, um capitalismo ainda fraco)
manifesta-se por uma dependência em relação ao mercado mundial. Essa dependência
vem reforçar o papel dominante do comércio na economia cafeeira e na economia
brasileira em geral
3.
Desenvolvimento da Economia cafeeira no inicio do século XX
3.1. Superprodução
O problema da
superprodução de café apareceu desde o final do s&ulo XIX. Em 1882, a
produção mundial havia ultrapassado o consumo mundial. Com a crise de 1893 nos
EUA o, principal consumidor do café brasileiro, os preços desse produto no
mercado mundial caem rapidamente.
A política
inflacionária seguida pelos primeiros governos republicanos e a rápida
desvalorização da moeda brasileira que acompanha a inflação, permite à
burguesia cafeeira amortecer os efeitos da baixa dos preços. Dessa maneira a
burguesia cafeeira distribui sobre o conjunto da economia brasileira os efeitos
da baixa dos preços.
Contudo, essa política
inflacionária tinha limites muito estreitos. De um lado ela acarretava o
aumento dos preços dos produtos importados e portanto, nas condições da
economia brasileira da época, uma alta geral do custo de vida. Em conseqüência,
a burguesia cafeeira encontrava a oposição de todas as outras classes que não
a burguesia agrária exportadora, desde os importadores aos trabalhadores
passando em particular pela pequena burguesia urbana. De outro lado, se o
aumento do volume das exportações não era tão forte que pudesse compensar a
baixa de preços, o governo federal encontrava-se em má situação para controlar
o serviço das dívidas,, que devia ser pago em libras.
A desvalorização monetária, do mesmo modo que as taxas
alfandegárias sobre as importações, não pode ser um meio eficaz de amortecer os
efeitos da queda das cotações internacionais do café senão dentro de certos
limites. A saída consiste em uma operação de funding-loan. Após essa operação,
o pagamento dos juros das dívidas antigas é suspenso por um período de 13 anos.
É a partir do
momento em que o mecanismo das trocas mostra-se incapaz de amortecer os efeitos
da queda dos preços que o problema de superprodução passa ao primeiro plano ou
em outros termos, que a burguesia cafeeira toma consciência da existência desse
problema e da necessidade de resolve-lo.
Só que o
funding-loan é uma medida provisória um meio de por em ordem as finanças de uma
nação. Mas uma vez resolvido esse problema, falta resolver o essencial: o
problema da superprodução.
A superprodução aumentava sempre a partir
de 1897, porém a colheita de 1906/1907 foi particularmente grande: ela
ultrapassou os 20 milhões de sacas.
3.2.Valorização
No início do mês de fevereiro de 1906, a grande burguesia
cafeeira, definiu os fundamentos de uma nova política de defesa do café. Era o início da “valorização” cujos principais
objetivos são assim resumidos por Furtado:
- compra dos excedentes pelo governo para
restabelecer o equilíbrio entre a oferta e a demanda;
-
financiamento dessas compras por empréstimos de bancos estrangeiros;
- pagamento do serviço desses empréstimos
através de um novo imposto (fixado em ouro) sobre a exportação de café;
- adoção de medidas destinadas a desencorajar a
expansão das plantações.
Essa política audaciosa não foi adotada imediatamente pelo
governo federal. Essa hesitação pode ser, em grande parte, explicada pela
posição de Lord Rothschild, que se declarou publicamente contra a sua
aplicação. ‘Ele pensava que caso a política de valorização fosse aplicada o
governo brasileiro não estaria mais em condições de cumprir as obrigações
assumidas em 1898 (funding-loan).
Dada a larga
autonomia concedida pela Constituição de 1889 aos governos dos Estados
federados — que os autorizava entre outras coisas, a fixar e recolher os
impostos sobre as exportações e a contrair empréstimos no estrangeiro — a
grande burguesia cafeeira pôde aplicar essa política imediatamente através do
Governo do Estado de São Paulo. O financiamento externo foi conseguido, junto a
outros bancos que buscavam seu espaço na economia brasileira.
Dessa maneira, a burguesia cafeeira impunha indiretamente
ao conjunto do país a política que ela havia definido. O governo central
terminou chamando para si a “valorização” para não perder todo o controle sobre
a política econômica nacional.
A revisão dá posição do governo federal brasileiro é
acompanhada pela revisão da posição de Rothschild, que, uma vez a “valorização”
aplicada por São Paulo com o apoio de outros bancos estrangeiros, decide
contribuir também para seu financiamento. A “valorização” parte a pleno vapor e
com ela toda a economia brasileira, durante os próximos decênios.
A valorização tem como resultado principal o
prosseguimento do desenvolvimento capitalista.
A partir de então o desenvolvimento capitalista,
assegurado pela “valorização”, é acompanhado por uma participação mais direta
do capital estrangeiro. - A partir da “valorização”, a realização da mais valia
torna-se praticamente impossível sem o financiamento dos bancos estrangeiros.
Assim o capital estrageiro torna-se dominante ao nível da comercialização do
café.
Os bancos nacionais
e estrangeiros, desempenham um papel importante no desenvolvimento capitalista
no Brasil. Rapidamente eles penetram em todos os setores da economia
brasileira, financiando as atividades mais diversas: o comércio, a importação,
a exportação, o açúcar, o café e também a indústria.
“São eles que adiantam o dinheiro necessário ao
financiamento da indústria, do. comércio e da agricultura, que entram em
relação com os compradores e vendedores no estrangeiro, que encaminham os investimentos
estrangeiros, que dominam e dirigem toda a vida econômica do pais”
Durante a primeira guerra mundial, os bancos recebem um
novo impulso. Os capitais até então aplicados nas atividades de importação e
exportação convergem para eles. O impulso industrial desses anos - do mesmo modo que, mais geralmente, o dos
três primeiros decênios do século XX — deve ser relacionado com a existência de
um sistema bancário relativamente poderoso.
È necessário distinguir claramente as duas camadas da
burguesia cafeeira para compreender os efeitos da “valorização”. Apesar dessa
política ter sido apoiada pelo conjunto da burguesia cafeeira, seus benefícios
são inteiramente diferentes se consideramos separadamente as suas duas camadas,
A grande burguesia cafeeira, proprietária dos bancos e das casas de exportação,
pode reservar-se uma parte cada vez mais importante do lucro realizado a partir
da produção do café.
A valorização representa portanto o apogeu do período que
estudamos aqui. Nesse sentido, parece-me errado ver nessa política um simples
adiamento do fim da dominação da economia cafeeira sobre o conjunto da
economia. Ela não constitui o começo do fim desse período senão na medida em
que representa, de certa maneira, o seu estágio supremo.
A “valorização” e a economia cafeeira em geral não podem
ser consideradas como um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Bem ao contrário, eles estão na base desse desenvolvimento.
4.
A questão da terra e da abundância de terras
Aparentemente, em um estudo sobre o café a questão da propriedade da
terra deveria ser examinada em primeiro lugar. Quando se pensa no café
brasileira, pensa-se imediatamente na terra e na propriedade da terra. Quando
se fala em burguesia cafeeira, fala-se de fazendeiros. Estes, quando defendiam
seus interesses não diziam defender os interesses da lavoura?
De fato, é mais correto expor essa questão após haver examinado aquelas que mostram mais claramente o desenvolvimento do capital na economia
cafeeira. Em outros termos, a ordem de exposição deve corresponder à ordem real
das relações de produção na economia cafeeira. Ela foi concebida dentro do
objetivo de destacar o fato de que o desenvolvimento das plantações de café é
dominado pelo capital, isto é, que ele faz parte do desenvolvimento
capitalista. E finalmente, que as formas da propriedade da terra devem, elas
também, explicar-se pelo desenvolvimento do capital.
As terras sobre as quais o café se estende são fundamentalmente de dois tipos: 1 — as terras que Já tinham- um proprietário (no sentido
jurídico do termo); 2 — as terras que não tinham proprietário. As primeiras
eram chamadas propriedades, as segundas terras devolutas. Literalmente:
propriedades e terras não ocupadas. Na verdade, as terras ditas devolutas não
são obrigatoriamente não ocupadas ou não apropriadas, no sentido econômico do
termo. Simplesmente seus ocupantes não possuem títulos de propriedade. Essa
“confusão” Jurídica não representa realmente uma confusão, nem é um fruto do
acaso; ela indica a força das relações de propriedade estabelecidas pela
colonização e consolidadas após a independência política; essas relações
constituem o ponto de partida da expansão capitalista baseada no café. Uma
terra que não tinha proprietário reconhecido juridicamente era considerada como
uma terra não ocupada, uma terra que não pertencia a ninguém.
Na medida em que as fronteiras do café deslocam-se para o
interior do país, a proporção das terras “devolutas” torna-se maior. Então os
homens do café ocupam, apropriam-se dessas terras. Para fazer isso, era
necessário estabelecer um título de propriedade, coisa fácil para a burguesia
cafeeira, que controlava diretamente o poder. Como essas terras jamais haviam
“pertencido” a alguém, a lei estava do lado do proprietário. Tratava-se
simplesmente de expulsar os ocupantes. Se a resistência era muito grande, ela
apelava para a milícia estadual ou mesmo para o exército.
Entre os ocupantes incômodos das terras desocupadas, havia
brasileiros de origem européia mais ou menos distante (alguns já mestiçados com
indígenas ou negros), que viviam fundamentalmente apoiados numa agricultura de
auto-subsistência. Havia também indígenas. Esses últimos estavam nessas terras
há séculos. Já nessa época, métodos mais
civilizados — como a disseminação de doenças contagiosas — eram utilizados para
tornar o local disponível para o capital.
Quando o café encontrava no seu caminho terras que já eram
propriedades, os proprietários dessas terras tinham, em regra geral, duas
soluções: integrar-se na expansão cafeeira ou vender suas terras. Todas as duas
conduziam ao mesmo resultado: a dominação do capital. Se eles participavam da
expansão cafeeira, tomavam-se eles mesmos membros da burguesia cafeeira.
Caso contrário eles vendiam as terras; cujos preços tinham
dado um salto fantástico com a chegada do café.
“A febre das plantações de café tiveram por primeira
conseqüência a elevação do preço das terras. O crescimento do preço das terras
ultrapassa toda medida... Fora das manchas de terra roxa, férteis e cobiçadas,
os preços baixavam; permaneciam contudo dez vezes mais altos que em outras
partes do Brasil meridional. O preço de compra de uma propriedade de 25 ha,, na
qual uma família podia viver, ultrapassava os recursos da maioria dos colonos;
eles deviam renunciar a se tornar proprietários.
A terra em si não tem valor, ela possui um preço na medida
em que representa um meio que permite a apropriação da mais valia. O preço
elevado da terra na região do café reflete a apropriação da terra pelo capital.
Como se sabe, um dos fatores considerados como
responsáveis pela expansão cafeeira é constituído pela abundância de terras. Em
conseqüência do que vimos até aqui, devemos considerar a abundância de terras
como algo relativo. À abundância de terras para o capital está associada a não
abundância para aqueles que devem constituir o mercado de trabalho.
Pelo menos nos primeiros estágios do desenvolvimento do
capitalismo, a posse da terra é um elemento de primeira importância no que se
refere à propriedade dos meios de produção e, portanto, à formação de um
mercado de trabalho “livre”. A importância desse elemento decresce na medida em
que o capitalismo se desenvolve no conjunto da economia e, em particular, no
campo, eliminando econômica e socialmente a agricultura de subsistência e as formas
primitivas de produção agrícola destinada ao mercado, nas quais o produtor
assegura ele mesmo a produção dos bens — ou de grande parte dos bens —
necessários à sua subsistência,
Com o desenvolvimento do capitalismo, a terra perde a sua
importância como meio de produção, e a separação entre trabalhador e meios de
produção depende cada vez menos da propriedade da terra.
Assim, nas fases iniciais do capitalismo não basta a
disponibilidade de terras em geral, mas a disponibilidade de terras em
particular para o capital, o que implica a não disponibilidade para os
trabalhadores. Nesse caso poderíamos pensar que a disponibilidade de terras,
mesmo sendo apenas uma disponibilidade relativa, seria em si mesma um elemento
determinante das formas de desenvolvimento do capital.
Não podemos negar a importância da terra como elemento
determinante das formas de desenvolvimento do capitalismo, em particular nos
seus primeiros estágios. Viemos de afirmá-lo.Entretanto, essa importância
apresenta-se em geral como manifestação de determinadas relações sociais, em
particular de relações sociais pré-capitalistas, que constituem condições
históricas para o desenvolvimento do capital. No que se refere aos países
capitalistas avançados da Europa, por exemplo, a questão da terra apresenta-se
através das formas de transição da produção agrícola feudal para a capitalista,
onde destaca-se a chamada economia camponesa.
O que chama a atenção no caso brasileiro é a aparente
ausência de determinantes sociais na questão sobre a abundância de terras.
Examinemos então mais de perto esse problema. É óbvio,
-mas não inútil, lembrar que a quantidade de terras é função da extensão do
território que consideramos. Não é inútil lembrar esse aspecto da questão
porque ele nos conduz diretamente ao fato de que esse território é limitado
socialmente; no caso, ele é o espaço sobre o qual se desenvolve o
capital.
Inicialmente esse espaço (sobre o qual o capital
desenvolve a produção capitalista) é reduzido. O capital “concentra” as suas
atividades ao nível de um espaço reduzido que serve de base física ao
estabelecimento da nação. É nesse espaço que, em regra geral, se resolve o
problema da disponibilidade da terra, que é historicamente limitada por uma
ocupação prévia do solo sob o domínio de outras relações sociais de produção de
cuja desagregação — aliás — resulta o próprio capitalismo.
Na época da expansão cafeeira do Brasil, o capitalismo
desenvolve-se sobre outras bases. Em primeiro lugar, a produção capitalista
rompe os limites dos territórios nacionais. Donde a importância de destacar
a relação entre disponibilidade de terras e a extensão do território sobre o
qual se desenvolve a produção capitalista. Mas esse elemento ainda não é
suficiente para resolver o nosso problema.
Em segundo lugar, a constituição de unia economia
mundial capitalista permite que o capital passe a desenvolver a produção em
lugares onde não se constituíram condições outrora necessárias ao seu
desenvolvimento. Em particular, o seu desenvolvimento não depende mais
unicamente da divisão do trabalho ao nível nacional, mas ainda da divisão
internacional do trabalho. Podemos afirmar que o marco de referência da
acumulação de capital não está mais essencialmente no desenvolvimento do
mercado interno, mas no desenvolvimento do mercado mundial. Com a seguinte
ressalva: como já vimos anteriormente, o próprio desenvolvimento do mercado
mundial capitalista entra em nova fase, com a constituição da economia mundial,
isto é, com o desenvolvimento da produção capitalista em escala mundial. E o
que nos interessa aqui não é o simples desenvolvimento do mercado, por mais
importante que seja, mas especificamente a expansão do espaço sobre o qual
se desenvolve a produção capitalista.
Essa
segunda condição — na verdade, a outra face da primeira — é a principal no que
se refere à abundância de terras. Ela nos mostra que é da transformação do
capitalismo e da constituição da economia. mundial capitalista que resulta a
questão da abundância de terras.. É o desenvolvimento internacional do
capitalismo e a divisão internacional do trabalho que criam as abundantes
terras do Brasil e alhures, permitindo, por exemplo, a especialização de vastas
regiões, antes praticamente desocupadas, em determinadas monoculturas. Sem a
divisão internacional do trabalho, o crescimento da produção de café — ou de
qualquer outro produto — nos níveis realizados no Brasil implicaria um
desenvolvimento do mercado interno tal que a questão relativa à disponibilidade
de terras seria certamente eliminada.
No limite, poderíamos ser tentados a afirmar que o
capitalismo pode então ocupar espaços completamente vazios, importando todos os
meios de produção e toda a força de trabalho necessários. Tal afirmação
significa levar a nossa tese ao limite do absurdo. Na verdade, ela não pode ser
deduzida de nossa tese, dado que não afirmamos que o desenvolvimento do
capitalismo em escala mundial suprima a necessidade de condições prévias ao
nível de cada nação especificamente. Tal conclusão implicaria numa concepção
inteiramente abstrata da economia mundial capitalista, fundada na ilusão do
desaparecimento das economias nacionais; quando, na verdade, a economia mundial
6 uma estrutura complexa formada pelas relações internacionais.
Afirmamos, entretanto, que o desenvolvimento da produção
capitalista ao nível internacional implica em que, ao nível nacional, as relações entre, de um lado, a acumulação de
capital e, de outro, o aprofundamento da divisão do trabalho e o crescimento do mercado são profundamente transformadas. E são essas transformações — na
verdade, modificação das formas de reprodução do capital ditadas pela
constituição de uma economia mundial — que se manifestam através de uma
acumulação relativamente rápida em relação ao crescimento do mercado interno ou outras “deformações” do gênero atribuídas ao subdesenvolvimento.
Em conclusão, essas formas de desenvolvimento do capital,
onde a acumulação apoia-se sobretudo em um desenvolvimento extensivo da
produção — isto é, com pouco aprofundamento da divisão do trabalho ao nível
nacional — não podem ser atribuídas simplesmente à abundância de terras, visto
que a própria abundância de terras deve ser explicada por essas novas formas de
acumulação determinadas pelas transformações do capitalismo e a constituição da
economia mundial capitalista.
Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil
Por Sérgio Silva. São Paulo, Alfa-Ômega
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