sexta-feira, 27 de junho de 2014

Economia Cafeeira

       A produção de café cresceu muito rapidamente durante todo o século XIX a partir da década de 1870-1880 o café torna-se o centro motor do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Este crescimento da produção cafeeira nessas décadas é acompanhado por um deslocamento do centro geográfico das plantações. Durante a década de 1880 a produção de SP ultrapassa a do RJ.
       A importância do rápido crescimento da produção e desse deslocamento geográfico só poderá ser entendida se considerarmos as simultâneas mudanças ocorridas ao nível das relações de produção, pois ao subir os planaltos de SP as plantações abandonam o trabalho escravo e experimentam uma certa mecanização (pelo menos para o beneficiamento do café).
       A possibilidade desse deslocamento é determinado pela construção de uma rede de estradas de ferro bastante importantes.
            O financiamento e a comercialização da produção implica no desenvolvimento de um sistema comercial relativamente avançado formado por casas de exportação e uma rede bancaria.
            É fundamentalmente por essas razoes que o café tornou-se o centro motor do desenvolvimento capitalista brasileiro. Iremos estudar agora essas características mais de perto.

1. Plantações 
1.1. Trabalho assalariado
            Com a imigração massiva, o trabalho escravo cedeu lugar ao trabalho assalariado nas plantações de café. Dois terços de imigrantes chegados de São Paulo são empregados nas plantações. Trata-se de um contrato de um ano, podendo ser rescindido pelas duas partes com um aviso prévio de um mês.
            Esse contrato previa o pagamento de um salário base proporcional do número de pés de café atribuídos ao trabalhador. A esse salário-base juntava-se uma soma variável em função da colheita obtida. O trabalhador comprometia-se a efetuar trabalhos exteriores à plantação. O preço da jornada de trabalho fora da plantação era fixado no contrato.
            Ao lado dessas retribuições monetárias o trabalhador recebia um pedaço de terra que podia ser cultivar por sua conta. O local desse terreno, assim como as culturas que nele podiam ser estabelecidas, eram precisadas no contrato. As culturas autorizadas eram milho, mandioca e feijão preto, isto é cultura de subsistência.   O produto dessas culturas era, em geral, inteiramente consumido pelo trabalhador e sua família. Os trabalhadores levavam ao mercado local o excedente da produção alimentar realizada na terra destinada a subsistência.
            Em vez de conceder ao trabalhador um pedaço de terra exterior às plantações, o fazendeiro podia autorizar o trabalhador a realizar culturas intercaladas. Esse sistema tinha a preferência dos trabalhadores, porque eles podiam, dessa maneira, manter com menos trabalho as duas culturas.
            Progressivamente, o sistema das culturas intercaladas tornou-se bastante raro. A interdição cada vez mais freqüente das culturas intercaladas aparece como um meio de aumentar a rentabilidade das plantações às custas dos trabalhadores.
            Essa tendência reforça-se com a crise de superprodução do café, que conduz ao aumento das taxas de exploração nas plantações. Ela é certamente estimulada com a chegada dos primeiros contingentes importantes de trabalhadores de origem brasileira, após a segunda guerra mundial.
            As migrações no interior do Brasil são uma conseqüência do próprio desenvolvimento das relações capitalistas que tinha como centro a economia cafeeira. Esse desenvolvimento traz com ele as estradas de ferro, que facilitam as grandes migrações.
            Até os anos 1920, os imigrantes de origem estrangeira são em maior número. E eles não aceitam sem luta a exploração à qual são submetidos. Essas lutas tomam as formas mais diversas, e muitas vezes violentas, dada a repressão exercida pelos fazendeiros que proíbem por exemplo, aos trabalhadores todo o direito de associação. É assim que as plantações são o palco de várias greves e que muitas vezes as divergências entre trabalhadores e fazendeiros ou seus administradores terminavam em tiros e assassinatos.
            Em razão das condições sociais e da remuneração, os trabalhadores ao fim do contrato de um ano, para procurar uma situação mais vantajosa nas novas plantações, nas cidades, ou mesmo em outros países da América Latina, como a Argentina.
            Ao examinar esse problema da indústria cafeeira, Dennis não em leva me consideração o fato de que essa industria é em grande parte o resultado da luta de trabalhadores que não aceitavam passivamente as condições de trabalho imposta pelos fazendeiros. Mesmo a mecanização parcial das fazendas não pode ser explicada se não considerarmos essa luta (nas formas mais diversas) entre o capital cafeeiro e os trabalhadores agrícolas.

1.2. Mecanização
            A substituição do escravo pelo trabalhador assalariado e o desenvolvimento das plantações de café em todo o Estado de São Paulo, acarretaram a mecanização de um parte da produção: as operações de beneficiamento.
            Após ter analisados alguns relatórios que insiste sobre as dificuldades dos fazendeiros para encontrar trabalhadores um fazendeiro chamado Taunay, inventor de uma máquina para o beneficiamento do café, afirma que a qualidade dos cafés de SP estava melhorando e ele atribui essa melhoria ao progresso no tratamento dos grãos imposto pela raridade da força de trabalho. Isso representava, diz ele um investimento importante mais rentável, porque o café tratado com máquinas era mais caro em cerca de 10% aos preços internacionais da época.
            Apesar de limitar-se às operações de beneficiamento, a mecanização não deve ser subestimada. Ela constituiu, de um lado, um meio necessário ao estabelecimento de plantações a distâncias muito grandes do porto de embarque. De outro lado apesar de a propriedade fundiária ter permanecido sempre o elemento principal que separava os trabalhadores dos meios de produção a mecanização desempenha também um papel importante nesse sentido Os produtos eram tratados e ensacados nas fazendas. A organização de uma plantação moderna implicava então na compra de um equipamento cujo preço ultrapassava largamente os recursos da massa de trabalhadores. Além disso, o funcionamento desses equipamentos supunha grandes plantações, capazes de fornecer uma produção suficiente para tornar rentável esses investimentos. Essa mecanização mesmo parcial representava um elemento importante do sistema de grandes plantações dominado pelo capital.
             Esse aspecto da economia cafeeira — a indústria cafeeira que caiu um pouco no esquecimento com o desenvolvimento posterior da indústria no Brasil foi muito fortemente assinalada pelos autores da época, como Pierre Dennis e também Delgado de Carvalho:
“A aparelhagem da usina de café atingiu um grau de per­feição muito notável em São Paulo. É hoje a indústria melhor organizada d& Brasil. As grandes fazendas de São Paulo são instalações modelo, que surpreendem o viajante estrangeiro e são dignas de figurar ao lado das indústrias mais bem aparelhadas da Europa”

1 - 3.   Estradas de ferro
O desenvolvimento da economia cafeeira não teria sido possível sem as estradas de ferro.. A antigas tropas de mulas não podiam escoar uma grande produção espalhada por milhares de quilômetros. Com as estradas de ferro as distancias deixaram de ser obstáculo importante. Todo o interior de São Paulo estava portanto apto a ser conquistado pelos “pioneiros” do café. As plantações não seriam mais esmagadas sob o peso de colheitas impossíveis de escoar
 A primeira estrada de ferro do café foi a Sociedade de Estradas de Ferro Pedro II, organizada pelo Governo do Império. Suas primeiras linhas começaram a funcionar no fim de 1859. Progressivamente ela foi buscar o café em todo o Vale do Paraíba e estendeu-se até o Norte de São Paulo e o Sudeste de Minas Gerais.
 A importância das estradas de ferro para a economia cafeeira pode ser ilustrada por esse cálculo de A. d’E. Taunay’ considerando que o preço do transporte pelo trem era seis vezes inferior ao das tropas de mulas, ele estima a economia entre 1860 e 1868, em 48.677 contos.
Em 1858, a São Paulo Railway Co. Ltd. era organizada na Grã-Bretanha. Ela foi encarregada de construir uma estrada de ferro ligando São Paulo ao Porto de Santos. Em 1867, a linha principal (Santos - São Paulo) entrava em serviço.
Outras companhias construíram estradas de ferro para, a partir de São Paulo, servir, todo o planalto. Essas companhias, organizadas pelo capital cafeeiro brasileiro. Seus principais acionistas eram os próprios grandes fazendeiros.
“Em 1879 — afirma Delgado de Carvalho — a zona cafeeira encontrava-se quase inteiramente coberta, mas a febre de construção, longe de diminuir, frente aos belos resultados que dava o transporte do café, procurava prolongar as diferentes redes ferroviárias”
O desenvolvimento das estradas de ferro era comandado pelos interesses dos administradores, produtores e comerciantes de café. Seu traçado, por vezes caprichoso e que será necessário corrigir ou suportar penosamente, depende da posição das maiores fazendas e da localizaØo das cidades do café”. Dos 736 km de estradas de ferro construídas no Brasil em 1868 eram “estradas do café”.
Com o rápido desenvolvimento da rede de estradas de ferro brasileira a partir de 1860  constitui-se uma infra-estrutura necessária ao desenvolvimento do capitalismo, em particular na região cafeeira.

2. Capital cafeeiro
 O processo de transformação das plantações de café é também o processo de formação da burguesia cafeeira. O desenvolvimento da economia cafeeira é o desenvolvimento do capital cafeeiro Mas a economia e o capital cafeeiros ultrapassam largamente as plantações. A transformação das plantações faz parte de um processo mais amplo e não pode ser corretamente explicado isoladamente, Em particular, a natureza capitalista dessas transformações e o desenvolvimento do capitalismo que tem por base a economia cafeeira não pode ser determinada unicamente ao nível das plantações.
Desde o começo, os principais líderes da marcha pioneira não se limitaram a organizar e dirigir plantações de café. Eles eram também compradores da produção do conjunto de proprietários de terra. Eles exerciam as funções de um banco, financiando o estabelecimento de novas plantações ou a modernização de seu equipamento, emprestando aos fazendeiros em dificuldade.
Pouco a pouco, eles se afastam das tarefas ligadas à gestão direta das plantações, que são confiadas a administradores. Eles se estabeleceram nas grandes cidades, sobretudo em São Paulo. Suas atividades de comerciantes não se conciliavam com uma ausência prolongada dos centros de negócios cafeeiros.
A medida que a economia cafeeira se desenvolve, o papel das casas de exportação, centralizando a compra de toda a produção cresce. A importância dos capitais aplicados nessa esfera de economia está ligada ao nascimento dos primeiros bancos brasileiros. As operações comerciais explicam o nas­cimento e o desenvolvimento dos bancos.

2. 1 -    Diversos aspectos e aspecto dominante do capital cafeeiro
 O capital cafeeiro tinha portanto diversos aspectos; ele apresenta ao mesmo tempo as características do capital agrário, do capital industrial, do capital bancário e do capital comercial. Esses diferentes aspectos, correspondem a diferentes funções do capital e tendem, com o desenvolvimento do capitalismo, a constituírem funções relativamente autônomas, preenchidas por capitais diferentes — o capital agrário, o capital industrial, etc e frações de classe particulares (a burguesia agrária, burguesia industrial, burguesia comercial, etc.) - Na economia cafeeira, caracterizada por um grau ainda fraco de desenvolvi­mento capitalista, essas diferentes funções são reunidas pelo capital cafeeiro e não definem (pelo menos diretamente) frações de classe relativamente autônomas: não havia uma burguesia agrária cafeeira, uma burguesia comercial, etc., mas uma burguesia cafeeira exercendo múltiplas funções.
Mas se o capital cafeeiro exerce funções diversas, essas funções estavam estruturadas de uma maneira precisa. As diferentes funções exercidas pelo capital cafeeiro correspondem a relações reais que mantinham entre si relações específicas. A análise dessas relações faz ressaltar a dominação das funções comerciais.
A dominação do capital comercial explica-se pela posição ocupada pelo Brasil no seio da economia mundial. Dado o fraco desenvolvimento de suas forças produtivas, o Brasil se vê designado, na divisão internacional do trabalho, a posição de país exportador de produtos agrícolas. Esse efeito do desenvolvimento das relações capitalistas mundiais (sobre as condições próprias da estrutura econômica brasileira, isto é, um capitalismo ainda fraco) manifesta-se por uma dependência em relação ao mercado mundial. Essa de­pendência vem reforçar o papel dominante do comércio na economia cafeeira e na economia brasileira em geral

3. Desenvolvimento da Economia cafeeira no inicio do século XX
3.1.      Superprodução
O problema da superprodução de café apareceu desde o final do s&ulo XIX. Em 1882, a produção mundial havia ultrapassado o consumo mundial. Com a crise de 1893 nos EUA o, principal consumidor do café brasileiro, os preços desse produto no mercado mundial caem rapidamente.
A política inflacionária seguida pelos primeiros governos republicanos e a rápida desvalorização da moeda brasileira que acompanha a inflação, permite à burguesia cafeeira amortecer os efeitos da baixa dos preços. Dessa maneira a burguesia cafeeira distribui sobre o conjunto da economia brasileira os efeitos da baixa dos preços.
Contudo, essa política inflacionária tinha limites muito estreitos. De um lado ela acarretava o aumento dos preços dos produtos importados e portanto, nas condições da economia brasileira da época, uma alta geral do custo de vida. Em conseqüência, a burguesia cafeeira encontrava a oposição de to­das as outras classes que não a burguesia agrária exportadora, desde os importadores aos trabalhadores passando em particular pela pequena burguesia urbana. De outro lado, se o aumento do volume das exportações não era tão forte que pudesse compensar a baixa de preços, o governo federal encontrava-se em má situação para controlar o serviço das dívidas,, que devia ser pago em libras.
A desvalorização monetária, do mesmo modo que as taxas alfandegárias sobre as importações, não pode ser um meio eficaz de amortecer os efeitos da queda das cotações internacionais do café senão dentro de certos limites. A saída consiste em uma operação de funding-loan. Após essa operação, o pagamento dos juros das dívidas antigas é suspenso por um período de 13 anos.
    É a partir do momento em que o mecanismo das trocas mostra-se incapaz de amortecer os efeitos da queda dos preços que o problema de superprodução passa ao primeiro plano ou em outros termos, que a burguesia cafeeira toma consciência da existência desse problema e da necessidade de resolve-lo. 
      Só que o funding-loan é uma medida provisória um meio de por em ordem as finanças de uma nação. Mas uma vez resolvido esse problema, falta resolver o essencial: o problema da superprodução.
      A superprodução aumentava sempre a partir de 1897, porém a colheita de 1906/1907 foi particularmente grande: ela ultrapassou os 20 milhões de sacas.

3.2.Valorização
 No início do mês de fevereiro de 1906, a grande burguesia cafeeira, definiu os fundamentos de uma nova política de defesa do café. Era o  início da “valorização” cujos principais objetivos são assim resumidos por Furtado:
- compra dos excedentes pelo governo para restabelecer o equilíbrio entre a oferta e a demanda;
- financiamento dessas compras por empréstimos de bancos estrangeiros;
- pagamento do serviço desses empréstimos através de um novo imposto (fixado em ouro) sobre a exportação de café;
- adoção de medidas destinadas a desencorajar a expansão das plantações.
Essa política audaciosa não foi adotada imediatamente pelo governo federal. Essa hesitação pode ser, em grande parte, explicada pela posição de Lord Rothschild, que se declarou publicamente contra a sua aplicação. ‘Ele pensava que caso a política de valorização fosse aplicada o governo brasileiro não estaria mais em condições de cumprir as obrigações assumidas em 1898 (funding-loan).
Dada a larga autonomia concedida pela Constituição de 1889 aos governos dos Estados federados — que os autorizava entre outras coisas, a fixar e recolher os impostos sobre as exportações e a contrair empréstimos no estrangeiro — a grande burguesia cafeeira pôde aplicar essa política imediatamente através do Governo do Estado de São Paulo. O financiamento externo foi conseguido, junto a outros bancos que buscavam seu espaço na economia brasileira.
Dessa maneira, a burguesia cafeeira impunha indiretamente ao conjunto do país a política que ela havia definido. O governo central terminou chamando para si a “valorização” para não perder todo o controle sobre a política econômica nacional.
A revisão dá posição do governo federal brasileiro é acompanhada pela revisão da posição de Rothschild, que, uma vez a “valorização” aplicada por São Paulo com o apoio de outros bancos estrangeiros, decide contribuir também para seu financiamento. A “valorização” parte a pleno vapor e com ela toda a economia brasileira, durante os próximos decênios.
A valorização tem como resultado principal o prosseguimento do desenvolvimento capitalista.
A partir de então o desenvolvimento capitalista, assegurado pela “valorização”, é acompanhado por uma participação mais direta do capital estrangeiro. - A partir da “valorização”, a realização da mais valia torna-se praticamente impossível sem o financiamento dos bancos estrangeiros. Assim o capital estrageiro torna-se dominante ao nível da comercialização do café.
 Os bancos nacionais e estrangeiros, desempenham um papel importante no desenvolvimento capitalista no Brasil. Rapidamente eles penetram em todos os setores da economia brasileira, financiando as atividades mais diversas: o comércio, a importação, a exportação, o açúcar, o café e também a indústria.
“São eles que adiantam o dinheiro necessário ao financiamento da indústria, do. comércio e da agricultura, que entram em relação com os compradores e vendedores no estrangeiro, que encaminham os investimentos estrangeiros, que dominam e dirigem toda a vida econômica do pais”
Durante a primeira guerra mundial, os bancos recebem um novo impulso. Os capitais até então aplicados nas atividades de importação e exportação convergem para eles. O impulso industrial desses anos -  do mesmo modo que, mais geralmente, o dos três primeiros decênios do século XX — deve ser relacionado com a existência de um sistema bancário relativamente poderoso.
È necessário distinguir claramente as duas camadas da burguesia cafeeira para compreender os efeitos da “valorização”. Apesar dessa política ter sido apoiada pelo conjunto da burguesia cafeeira, seus benefícios são inteiramente diferentes se consideramos separadamente as suas duas camadas, A grande burguesia cafeeira, proprietária dos bancos e das casas de exportação, pode reservar-se uma parte cada vez mais importante do lucro realizado a partir da produção do café.
A valorização representa portanto o apogeu do período que estudamos aqui. Nesse sentido, parece-me errado ver nessa política um simples adiamento do fim da dominação da economia cafeeira sobre o conjunto da economia. Ela não constitui o começo do fim desse período senão na medida em que representa, de certa maneira, o seu estágio supremo.
A “valorização” e a economia cafeeira em geral não podem ser consideradas como um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Bem ao contrário, eles estão na base desse desenvolvimento.

4. A questão da terra e da abundância de terras
Aparentemente, em um estudo sobre o café a questão da propriedade da terra deveria ser examinada em primeiro lugar. Quando se pensa no café brasileira, pensa-se imediatamente na terra e na propriedade da terra. Quando se fala em burguesia cafeeira, fala-se de fazendeiros. Estes, quando defendiam seus interesses não diziam defender os interesses da lavoura?
De fato, é mais correto expor essa questão após haver examinado aquelas que mostram mais claramente o desenvolvimento do capital na economia cafeeira. Em outros termos, a ordem de exposição deve corresponder à ordem real das relações de produção na economia cafeeira. Ela foi concebida dentro do objetivo de destacar o fato de que o desenvolvimento das plantações de café é dominado pelo capital, isto é, que ele faz parte do desenvolvimento capitalista. E finalmente, que as formas da propriedade da terra devem, elas também, explicar-se pelo desenvolvimento do capital.
As terras sobre as quais o café se estende são fundamentalmente de dois tipos: 1 — as terras que Já tinham- um proprietário (no sentido jurídico do termo); 2 — as terras que não tinham proprietário. As primeiras eram chamadas propriedades, as segundas terras devolutas. Literalmente: propriedades e terras não ocupadas. Na verdade, as terras ditas devolutas não são obrigatoriamente não ocupadas ou não apropriadas, no sentido econômico do termo. Simplesmente seus ocupantes não possuem títulos de propriedade. Essa “confusão” Jurídica não representa realmente uma confusão, nem é um fruto do acaso; ela indica a força das relações de propriedade estabelecidas pela colonização e consolidadas após a independência política; essas relações constituem o ponto de partida da expansão capitalista baseada no café. Uma terra que não tinha proprietário reconhecido juridicamente era considerada como uma terra não ocupada, uma terra que não pertencia a ninguém.
Na medida em que as fronteiras do café deslocam-se para o interior do país, a proporção das terras “devolutas” torna-se maior. Então os homens do café ocupam, apropriam-se dessas terras. Para fazer isso, era necessário estabelecer um título de propriedade, coisa fácil para a burguesia cafeeira, que controlava diretamente o poder. Como essas terras jamais haviam “pertencido” a alguém, a lei estava do lado do proprietário. Tratava-se simplesmente de expulsar os ocupantes. Se a resistência era muito grande, ela apelava para a milícia estadual ou mesmo para o exército.
Entre os ocupantes incômodos das terras desocupadas, ha­via brasileiros de origem européia mais ou menos distante (alguns já mestiçados com indígenas ou negros), que viviam fundamentalmente apoiados numa agricultura de auto-subsistência. Havia também indígenas. Esses últimos estavam nessas terras há séculos.  Já nessa época, métodos mais civilizados — como a disseminação de doenças contagiosas — eram utilizados para tornar o local disponível para o capital.
Quando o café encontrava no seu caminho terras que já eram propriedades, os proprietários dessas terras tinham, em regra geral, duas soluções: integrar-se na expansão cafeeira ou vender suas terras. Todas as duas conduziam ao mesmo resultado: a dominação do capital. Se eles participavam da expansão cafeeira, tomavam-se eles mesmos membros da burguesia cafeeira.
Caso contrário eles vendiam as terras; cujos preços tinham dado um salto fantástico com a chegada do café.
“A febre das plantações de café tiveram por primeira conseqüência a elevação do preço das terras. O crescimento do preço das terras ultrapassa toda medida... Fora das manchas de terra roxa, férteis e cobiçadas, os preços baixavam; permaneciam contudo dez vezes mais altos que em outras partes do Brasil meridional. O preço de compra de uma propriedade de 25 ha,, na qual uma família podia viver, ultra­passava os recursos da maioria dos colonos; eles deviam renunciar a se tornar proprietários.
A terra em si não tem valor, ela possui um preço na medida em que representa um meio que permite a apropriação da mais valia. O preço elevado da terra na região do café reflete a apropriação da terra pelo capital.
Como se sabe, um dos fatores considerados como responsáveis pela expansão cafeeira é constituído pela abundância de terras. Em conseqüência do que vimos até aqui, devemos considerar a abundância de terras como algo relativo. À abundância de terras para o capital está associada a não abundância para aqueles que devem constituir o mercado de trabalho.
Pelo menos nos primeiros estágios do desenvolvimento do capitalismo, a posse da terra é um elemento de primeira importância no que se refere à propriedade dos meios de produção e, portanto, à formação de um mercado de trabalho “livre”. A importância desse elemento decresce na medida em que o capitalismo se desenvolve no conjunto da economia e, em particular, no campo, eliminando econômica e socialmente a agricultura de subsistência e as formas primitivas de produção agrícola destinada ao mercado, nas quais o produtor assegura ele mesmo a produção dos bens — ou de grande parte dos bens — necessários à sua subsistência,
Com o desenvolvimento do capitalismo, a terra perde a sua importância como meio de produção, e a separação entre trabalhador e meios de produção depende cada vez menos da propriedade da terra.
Assim, nas fases iniciais do capitalismo não basta a disponibilidade de terras em geral, mas a disponibilidade de terras em particular para o capital, o que implica a não disponibilidade para os trabalhadores. Nesse caso poderíamos pensar que a disponibilidade de terras, mesmo sendo apenas uma disponibilidade relativa, seria em si mesma um elemento determinante das formas de desenvolvimento do capital.
Não podemos negar a importância da terra como elemento determinante das formas de desenvolvimento do capitalismo, em particular nos seus primeiros estágios. Viemos de afirmá-lo.Entretanto, essa importância apresenta-se em geral como manifestação de determinadas relações sociais, em particular de relações sociais pré-capitalistas, que constituem condições históricas para o desenvolvimento do capital. No que se refere aos países capitalistas avançados da Europa, por exemplo, a questão da terra apresenta-se através das formas de transição da produção agrícola feudal para a capitalista, onde destaca-se a chamada economia camponesa.
O que chama a atenção no caso brasileiro é a aparente ausência de determinantes sociais na questão sobre a abundância de terras.
Examinemos então mais de perto esse problema. É óbvio, -mas não inútil, lembrar que a quantidade de terras é função da extensão do território que consideramos. Não é inútil lembrar esse aspecto da questão porque ele nos conduz direta­mente ao fato de que esse território é limitado socialmente; no caso, ele é o espaço sobre o qual se desenvolve o capital.
Inicialmente esse espaço (sobre o qual o capital desenvolve a produção capitalista) é reduzido. O capital “concentra” as suas atividades ao nível de um espaço reduzido que serve de base física ao estabelecimento da nação. É nesse espaço que, em regra geral, se resolve o problema da disponibilidade da terra, que é historicamente limitada por uma ocupação prévia do solo sob o domínio de outras relações sociais de produção de cuja desagregação — aliás — resulta o próprio capitalismo.
Na época da expansão cafeeira do Brasil, o capitalismo desenvolve-se sobre outras bases. Em primeiro lugar, a produção capitalista rompe os limites dos territórios nacionais. Donde a importância de destacar a relação entre disponibilidade de terras e a extensão do território sobre o qual se desenvolve a produção capitalista. Mas esse elemento ainda não é suficiente para resolver o nosso problema.
Em segundo lugar, a constituição de unia economia mundial capitalista permite que o capital passe a desenvolver a produção em lugares onde não se constituíram condições outro­ra necessárias ao seu desenvolvimento. Em particular, o seu desenvolvimento não depende mais unicamente da divisão do trabalho ao nível nacional, mas ainda da divisão internacional do trabalho. Podemos afirmar que o marco de referência da acumulação de capital não está mais essencialmente no desenvolvimento do mercado interno, mas no desenvolvimento do mercado mundial. Com a seguinte ressalva: como já vimos anteriormente, o próprio desenvolvimento do mercado mundial capitalista entra em nova fase, com a constituição da economia mundial, isto é, com o desenvolvimento da produção capitalista em escala mundial. E o que nos interessa aqui não é o simples desenvolvimento do mercado, por mais importante que seja, mas especificamente a expansão do espaço sobre o qual se desenvolve a produção capitalista.
Essa segunda condição — na verdade, a outra face da primeira — é a principal no que se refere à abundância de terras. Ela nos mostra que é da transformação do capitalismo e da constituição da economia. mundial capitalista que resulta a questão da abundância de terras.. É o desenvolvimento internacional do capitalismo e a divisão internacional do trabalho que criam as abundantes terras do Brasil e alhures, permitindo, por exemplo, a especialização de vastas regiões, antes praticamente desocupadas, em determinadas monoculturas. Sem a divisão internacional do trabalho, o crescimento da produção de café — ou de qualquer outro produto — nos níveis realizados no Brasil implicaria um desenvolvimento do mercado interno tal que a questão relativa à disponibilidade de terras seria certamente eliminada.
No limite, poderíamos ser tentados a afirmar que o capitalismo pode então ocupar espaços completamente vazios, importando todos os meios de produção e toda a força de trabalho necessários. Tal afirmação significa levar a nossa tese ao limite do absurdo. Na verdade, ela não pode ser deduzida de nossa tese, dado que não afirmamos que o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial suprima a necessidade de condições prévias ao nível de cada nação especificamente. Tal conclusão implicaria numa concepção inteiramente abstrata da economia mundial capitalista, fundada na ilusão do desaparecimento das economias nacionais; quando, na verdade, a economia mundial 6 uma estrutura complexa formada pelas relações internacionais.
Afirmamos, entretanto, que o desenvolvimento da produção capitalista ao nível internacional implica em que, ao nível nacional, as relações entre, de um lado, a acumulação de capital e, de outro, o aprofundamento da divisão do trabalho e o crescimento do mercado são profundamente transformadas. E são essas transformações — na verdade, modificação das formas de reprodução do capital ditadas pela constituição de uma economia mundial — que se manifestam através de uma acumulação relativamente rápida em relação ao crescimento do mercado interno ou outras “deformações” do gênero atribuídas ao subdesenvolvimento.

Em conclusão, essas formas de desenvolvimento do capital, onde a acumulação apoia-se sobretudo em um desenvolvimento extensivo da produção — isto é, com pouco aprofundamento da divisão do trabalho ao nível nacional — não podem ser atribuídas simplesmente à abundância de terras, visto que a própria abundância de terras deve ser explicada por essas novas formas de acumulação determinadas pelas transformações do capitalismo e a constituição da economia mundial capitalista.
Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil 
Por Sérgio Silva. São Paulo, Alfa-Ômega

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